quarta-feira, abril 20, 2005

A vergonha ( 2 )

" Há relativamente pouco tempo, no East End, em Londres, um pai paquistanês matou a sua única filha, porque, fazendo amor com um rapaz branco, ela tinha lançado sobre a família uma tal desonra que só o sangue poderia apagar tamanho labéu. A tragédia era interrompida pelo imenso e óbvio amor do pai por aquela filha assassinada e pela repugnância dos amigos e parentes (todos «asiáticos» para usarmos o termo confuso dessa época difícil) em condenarem o crime. Tristemente declararam diante dos microfones das rádios e câmaras de televisão que compreendiam o ponto de vista do homem e continuavam a apoiá-lo, mesmo quando se apurou que a rapariga não tinha ido «até ao fim» na relação com o namorado. (...). A notícia não me soava a nada de estranho. Nós os que fomos educados na honra e na vergonha compreendemos facilmente o que parece impensável a pessoas que vivem num mundo em que Deus e a tragédia morreram; compreendemos que os homens sacrifiquem o que possuem de mais querido nos altares implacáveis do orgulho. (E não só os homens. Ouvi posteriormente falar de uma mulher que cometeu o mesmo crime pelas mesmas razões.) O eixo sobre o qual giramos está entre a vergonha e a falta de vergonha: neste dois pólos, as condições metereológicas são extremas e de tipo feroz. A falta de vergonha, a vergonha: as raízes da violência".


Rushdie, Salman (1988), A vergonha. Lisboa: Publicações Dom Quixote, pp. 119-120.