sábado, março 25, 2006

A culpa de existir

“ A organização de um sentimento de culpa é algo muito específico da espécie humana e caracteriza um dos seus aspectos mais evoluídos, algo que emocionalmente corresponde a uma construção mental de determinado nível de funcionamento mental. Naqueles que têm uma evolução saudável, a culpa organiza-se precocemente na vida infantil e assenta numa estrutura de autocensura regulatória que é fulcral na relação, pois pressupõe que logo os mais novos comecem a interiorizar o impacto dos seus actos nos outros, quer através de uma identificação empática quer por uma capacidade de reparação desses mesmos actos.”
(…)
Pois é. Crescer emocionalmente saudável não é tarefa fácil. E há aspectos que, se cedo adquiridos, podem marcar a diferença para o lado melhor. Só que para que tal aconteça é preciso sentir que o mundo não somos só nós, que tudo quanto fazemos tem repercussão nos que temos por mais próximos e que vulgarmente amamos (ou deveríamos amar) e que sobre o negativo dos nossos actos existe ainda uma coisa que se chama remorso, e por último, capacidade de reparação. Sem nenhuma noção de culpa, ninguém ama verdadeiramente mais nada a não ser a si próprio e, mesmo aí, não cessa de se destruir e de destruir o que mais importante haveria em si e nos outros. Mas com ela nasce a possibilidade de cuidar, de tentar fazer melhor, de respeitar e querer ajudar os mais fracos, ou os esquecidos ou os diminuídos, porque a empatia existe e, com ela, o respeito, a verdade, a vida, o amor. Porque, como rematava Prado Coelho, “o estilo contagia”. Não podíamos estar mais de acordo.”

Pedro Strecht in Público, 15 de Julho de 2005, p. 12.